OS DESIGREJADOS
Por:
AUGUSTUS NICODEMUS
Para
mim resta pouca dúvida de que a igreja institucional e organizada está hoje no
centro de acirradas discussões em praticamente todos os quartéis da
cristandade, e mesmo fora dela. O surgimento de milhares de denominações
evangélicas, o poderio apostólico de igrejas neopentecostais, a
institucionalização e secularização das denominações históricas, a
profissionalização do ministério pastoral, a busca de diplomas teológicos
reconhecidos pelo estado, a variedade infindável de métodos de crescimento de
igrejas, de sucesso pastoral, os escândalos ocorridos nas igrejas, a falta de
crescimento das igrejas tradicionais, o fracasso das igrejas emergentes – tudo
isto tem levado muitos a se desencantarem com a igreja institucional e
organizada.
Alguns
simplesmente abandonaram a igreja e a fé. Mas, outros, querem abandonar apenas
a igreja e manter a fé. Querem ser cristãos, mas sem a igreja. Muitos destes
estão apenas decepcionados com a igreja institucional e tentam continuar a ser
cristãos sem pertencer ou frequentar nenhuma. Todavia, existem aqueles que,
além de não mais frequentarem a igreja, tomaram esta bandeira e passaram a
defender abertamente o fracasso total da igreja organizada, a necessidade de um
cristianismo sem igreja e a necessidade de sairmos da igreja para podermos
encontrar Deus. Estas ideias vêm sendo veiculadas através de livros, palestras
e da mídia. Viraram um movimento que cresce a cada dia. São os desigrejados.
Eu
concordo com vários dos pontos defendidos pelos desigrejados. Infelizmente,
eles estão certos quanto ao fato de que muitos evangélicos confundem a igreja
organizada com a igreja de Cristo e têm lutado com unhas e dentes para defender
sua denominação e sua igreja, mesmo quando estas não representam genuinamente
os valores da Igreja de Cristo. Concordo também que a igreja de Cristo não
precisa de templos construídos e nem de todo o aparato necessário para sua
manutenção. Ela, na verdade, subsistiu de forma vigorosa nos quatro primeiros
séculos se reunindo em casas, cavernas, vales, campos, e até cemitérios. Os
templos cristãos só foram erigidos após a oficialização do Cristianismo por
Constantino, no séc. IV.
É
verdade que Jesus não deixou uma igreja institucionalizada aqui neste mundo.
Todavia, ele disse algumas coisas sobre a igreja que levaram seus discípulos a
se organizarem em comunidades ainda no período apostólico e muito antes de
Constantino:
1)
Jesus disse aos discípulos que sua igreja seria edificada sobre a declaração de
Pedro, que ele era o Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16.15-19). A igreja foi fundada
sobre esta pedra, que é a verdade sobre a pessoa de Jesus (cf. 1Pd 2.4-8). O que se desviar
desta verdade – a divindade e exclusividade da pessoa de Cristo – não é igreja
cristã. Não admira que os apóstolos estivessem prontos a rejeitar os livre-pensadores
de sua época, que queriam dar uma outra interpretação à pessoa e obra de Cristo
diferente daquela que eles receberam do próprio Cristo. As igrejas foram
instruídas pelos apóstolos a rejeitar os livre-pensadores como os gnósticos e
judaizantes, e libertinos desobedientes, como os seguidores de Balaão e os
nicolaítas (cf.
2Jo 10; Rm 16.17; 1Co 5.11; 2Ts 3.6; 3.14; Tt 3.10; Jd 4; Ap 2.14; 2.6,15).
Fica praticamente impossível nos
mantermos sobre a rocha, Cristo, e sobre a tradição dos apóstolos registrada
nas Escrituras, sem sermos igreja, onde somos ensinados, corrigidos,
admoestados, advertidos, confirmados, e onde os que se desviam da verdade
apostólica são rejeitados.
2)
A declaração de Jesus acima, que a sua igreja se ergue sobre a confissão acerca
de sua Pessoa, nos mostra a ligação
estreita, orgânica e indissolúvel entre ele e sua igreja. Em outro lugar,
ele ilustrou esta relação com a figura da videira e seus galhos (João 15). Esta união foi
muito bem compreendida pelos seus discípulos, que a compararam à relação entre
a cabeça e o corpo (Ef 1.22-23), a relação marido e mulher (Ef 5.22-33) e entre o edifício e a pedra sobre o qual ele se
assenta (1Pd
2.4-8). Os desigrejados
querem Cristo, mas não querem sua igreja. Querem o noivo, mas rejeitam sua
noiva. Mas, aquilo que Deus ajuntou, não o separe o homem. Não podemos ter um
sem o outro.
3)
Jesus instituiu também o que chamamos de processo disciplinar, quando ensinou aos
seus discípulos de que maneira deveriam proceder no caso de um irmão que caiu
em pecado (Mt
18.15-20). Após repetidas
advertências em particular, o irmão faltoso, porém endurecido, deveria ser
excluído da “igreja” – pois é, Jesus usou o termo – e não deveria mais ser
tratado como parte dela (Mt 18.17). Os apóstolos entenderam isto muito bem, pois
encontramos em suas cartas dezenas de advertências às igrejas que eles
organizaram para que se afastassem e excluíssem os que não quisessem se
arrepender dos seus pecados e que não andassem de acordo com a verdade
apostólica. Um bom exemplo disto é a exclusão do “irmão” imoral da igreja de
Corinto (1Co 5). Não entendo
como isto pode ser feito numa fraternidade informal e livre que se reúne para
bebericar café nas sextas à noite e discutir assuntos culturais, onde não
existe a consciência de pertencemos a um corpo que se guia conforme as regras
estabelecidas por Cristo.
4)
Jesus determinou que seus seguidores fizessem discípulos em todo o mundo, e que
os batizassem e ensinassem a eles tudo o que ele havia mandado (Mt 28.19-20). Os discípulos entenderam isto muito bem. Eles
organizaram os convertidos em igrejas, os quais eram batizados e instruídos no
ensino apostólico. Eles estabeleceram líderes espirituais sobre estas igrejas,
que eram responsáveis por instruir os convertidos, advertir os faltosos e
cuidar dos necessitados (At 6.1-6; At 14.23). Definiram claramente o
perfil destes líderes e suas funções, que iam desde o governo espiritual das
comunidades até a oração pelos enfermos (1Tm 31-13; Tt 1.5-9; Tg 5.14).
5)
Não demorou também para que os cristãos apostólicos elaborassem as primeiras
declarações ou confissões de fé que encontramos (cf. Rm 10.9; 1Jo 4.15; At 8.36-37; Fp 2.5-11;
etc.), que serviam de base para a
catequese e instrução dos novos convertidos, e para examinarem e rejeitarem os
falsos mestres. Veja, por exemplo, João usando uma destas declarações para
repelir livre-pensadores gnósticos das igrejas da Ásia (2Jo 7-10; 1Jo 4.1-3). Ainda no período apostólico já
encontramos sinais de que as igrejas haviam se organizado e estruturado, tendo
presbíteros, diáconos, mestres e guias, uma ordem de viúvas e ainda
presbitérios (1Tm
3.1; 5.17,19; Tt 1.5; Fp 1.1; 1Tm 3.8,12; 1Tm 5.9; 1Tm 4.14). O exemplo mais antigo que temos desta organização é a
reunião dos apóstolos e presbíteros em Jerusalém para tratar de um caso de
doutrina – a inclusão dos gentios na igreja e as condições para que houvesse
comunhão com os judeus convertidos (At 15.1-6). A decisão deste que ficou conhecido
como o “concílio de Jerusalém” foi levada para ser obedecida nas demais igrejas
(At 16.4), mostrando que havia desde
cedo uma rede hierárquica entre as igrejas apostólicas, poucos anos depois de
Pentecostes e muitos anos antes de Constantino.
6)
Jesus também mandou que seus discípulos se reunissem regularmente para comer o
pão e beber o vinho em memória dele (Lc 22.14-20). Os apóstolos seguiram a ordem, e
reuniam-se regularmente para celebrar a Ceia (At 2.42; 20.7; 1Co 10.16). Todavia,
dada à natureza da Ceia, cedo introduziram normas para a participação nela,
como fica evidente no caso da igreja de Corinto (1Co 11.23-34). Não sei direito como os desigrejados celebram a Ceia, mas deve ser
difícil fazer isto sem que estejamos na companhia de irmãos que partilham da
mesma fé e que creem a mesma coisa sobre o Senhor.
É
curioso que a passagem predileta dos desigrejados – “onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20) – foi proferida por Jesus
no contexto da igreja organizada. Estes
dois ou três que ele menciona são os dois ou três que vão tentar ganhar o irmão
faltoso e reconduzi-lo à comunhão da igreja (Mt 18.16). Ou seja, são os dois ou três que estão agindo para preservar a pureza
da igreja como corpo, e não dois ou três que se separam dos demais e resolvem
fazer sua própria igrejinha informal ou seguir carreira solo como cristãos.
O
meu ponto é este: que muito antes do período pós-apostólico, da intrusão da
filosofia grega na teologia da Igreja e do decreto de Constantino – os três
marcos que segundo os desigrejados são responsáveis pela corrupção da igreja
institucional – a igreja de Cristo já estava organizada, com seus ofícios,
hierarquia, sistema disciplinar, funcionamento regular, credos e confissões. A
ponto de Paulo se referir a ela como “coluna
e baluarte da verdade” (1Tm 3.15) e o autor
de Hebreus repreender os que deixavam de se congregar com os demais cristãos (Hb 10.25). O livro de Atos faz diversas menções
das “igrejas”, referindo-se a elas como corpos definidos e organizados nas
cidades (cf. At 15.41; 16.5; veja também
Rm 16.4,16; 1Co 7.17; 11.16; 14.33; 16.1; etc. – a relação é muito grande).
No
final, fico com a impressão que os
desigrejados, na verdade, não são contra a igreja organizada meramente
porque desejam uma forma mais pura de Cristianismo, mais próxima da forma
original – pois esta forma original já nasceu organizada e estruturada, nos
Evangelhos e no restante do Novo Testamento. Acho que eles querem mesmo é liberdade para serem cristãos do jeito
deles, acreditar no que quiserem e viver do jeito que acham correto, sem ter
que prestar contas a ninguém. Pertencer a uma igreja organizada,
especialmente àquelas que historicamente são confessionais e que têm
autoridades constituídas, conselhos e concílios, significa submeter nossas ideias
e nossa maneira de viver ao crivo do Evangelho, conforme entendido pelo
Cristianismo histórico. Para muitos,
isto é pedir demais.
Eu não tenho ilusões
quanto ao estado atual da igreja. Ela é imperfeita e continuará assim enquanto
eu for membro dela.
A teologia Reformada não deixa dúvidas quanto ao estado de imperfeição,
corrupção, falibilidade e miséria em que a igreja militante se encontra no
presente, enquanto aguarda a vinda do Senhor Jesus, ocasião em que se tornará
igreja triunfante. Ao mesmo tempo, ensina que não podemos ser cristãos sem ela.
Que apesar de tudo, precisamos uns dos
outros, precisamos da pregação da Palavra, da disciplina e dos sacramentos, da
comunhão de irmãos e dos cultos regulares.
Cristianismo sem
igreja é uma outra religião, a religião individualista dos livre-pensadores,
eternamente em dúvida, incapazes de levar cativos seus pensamentos à obediência
de Cristo.
Autor: Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes
OBS: Este Blog
publicou parte do artigo do Rev. Augustus Nicodemus. Para ter acesso ao post
completo entre no Blog: http://pno.org.br/Artigo/112
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